Caíam-lhe as
lágrimas enquanto escrevia, agarrada a monotonia em que se deixára cair nos
últimos dias e nem o papel, nem a caneta, pareciam salvá-la da agonia interior.
Sentia melancolia pelo corpo todo e punha as mãos na cabeça para tentar atenuar
a dor. Não havia propriamente explicação para sentir isto, se não talvez o
facto de querer falar com alguém mas sentir que na verdade, não tinha ninguém
para falar. As palavras corriam-lhe no cérebro como carne dentro de um picador,
prontas a serem lançadas à balda cá para fora, mas não podia dizer nada. Se
dissesse, ia ser mais uma vez em que pequenas frustrações se tinham tornado em
grandes dilúvios, o que aos olhos das outras pessoas, é sempre demais e inútil
de explicar. Podia, hoje, considerar-se ela também inútil. Sentia que a
corrosão da insegurança que carregou consigo durante anos, voltava por uma
noite e a fazia ter mais uma vez vontade de desaparecer... Vontade essa que não
conseguia concretizar se não com os seus próprios pés. Eram cinco da manhã e já
estava de pijama, mas mesmo assim vestiu-se, pôs o casaco mais feio e mais
quente do armário e com o cabelo esgrouviado e os dentes por lavar, saiu porta
fora. Saiu, e deixou o papel e a caneta para trás. Mas trouxe consigo o
cérebro, que até de manhã a quis acompanhar por montes e vales, na zona que
rodeava a sua casa... talvez até mais longe do que estava habituada, mas não
ligou a isso. Na sua cabeça tinha constantemente a palavra “amor” a trespassar
o cérebro e parecia que lhe estavam a gritar nos ouvidos a lembrança do que já
deixou para trás. Fazia-a tremer e chorar, sem haver propriamente motivo que
lhe provocasse um choro desenfreado... mas também não eram lágrimas de
crocodilo, eram verdadeiras, daqueles incontroláveis e silenciosas. O mundo
devia estar todo a gozar com ela se reparassem nesta figura. Tinha passado mais
um ano, é verdade. E tinha passado a correr, sem dar por isso... e reparou que
encontrou alguém diferente sim, mas que só conseguiu mudar quase no fim, o que
a fazia lembrar-se do quão estúpida tinha sido ao longo do ano. É que estas
coisas de seguir o coração, são muito bonitas, mas só são bonitas nos livros...
agora olhando para trás, mais valia ter seguido outra coisa qualquer. Podia ter-se defendido mais vezes,
cuidado de si e do que a faz ser quem é e dar mais valor a si própria, tal como
agora consegue fazer. Mas esta sensação estupidificante vinha a falar mais alto
nesta noite, porque a tornava perdedora, ou pelo menos era assim que se sentia...
não sei se era o ego ou o seu subconsciente que a faziam pensar isso, mas
também não conseguia encontrar a reposta. Ás vezes apoiar-se nela própria
parecia não chegar, mesmo depois de ter aprendido as técnicas todas e o seu
valor, que sabia não ser pequeno, sentia-se pequenina. Apetecia-lhe encontrar
alguém no meio dos arvoredos por onde passava e conseguir que essa pessoa
ficasse sentada com ela a ver a estrelas sem dizer nada, sem apontar o dedo,
sem lhe pedir justificações, sem perguntar porquês... só estar ali a o lado, em
silencio, a saborear o bom que isso é. Cada ano que passava, trazia-lhe uma
lição: sempre no amor, nos estudos, na vida em geral. Mas essas lições acabavam
por se tornar inúteis quando reparava que nada disso podia ter uso quando o seu
coração não deixava. A verdade é que olhando para trás, estava tudo muito parecido,
mas se aprofundasse as coisas... muita coisa tinha mudado. Aproximava-se um ano
em que teria que crescer mais um bocadinho, já não era mais criança, por mais
que tivesse uma criança gigante dentro dela. As pessoas à sua volta também
tinham mudado, umas para melhor, outras para pior, mas tinham mudado. Uns
ficaram para trás, outros acompanharam-na e outros já nem lembrava o porquê de
entrarem na sua vida, porque muito rapidamente saíram. Mas os traços de alguém
que permanece um ano dentro do nosso coração sem correspondência, ás vezes
acabam por ser demasiado fortes para serem esquecidos. Estava com ele na
cabeça, mas com o passado dele,
não com o presente. E aí é que estava presa a retrospectiva... como é que um
ano depois, se sentia parva a olhar para trás e a saber todos, todos os
pormenores do que tinha acontecido? É que já não o queria, não queria mesmo...
mas quando pensava nele, ia notando as marcas que o tinham feito desaparecer há
um ano atrás e tinha vontade de chorar. Mas se isto tudo – estas coisas das
relações – são sempre o reflexo de cada um – o que cada um dá e recebe, como é
que tinha ficado tão presa a nada? Nada disto tinha resposta, algo que ela sabia
perfeitamente. Ainda por cima tinha-se livrado de tudo (talvez a melhor coisa
que alguma vez fez), mas não podia livrar-se da cabeça. Era boa em cúpido dos
outros, mas nela própria.... nunca resultava. É que dizer os outros para
seguirem o coração dava resultado e normalmente o resultado era muito bom –
felizes para sempre. Mas nela, “segue o coração” nunca foi um conselho muito
bom, porque acabava agarrada ao coração sozinha. Na verdade nunca soubera bem o
que queria, mas havia qualquer coisa que a prendia... também não sabe que coisa
é essa. A cabeça estava numa confusão imensa, e apercebera-se que todos os anos
tinha este tipo de sentimentos quando chegava ao final do ano. Uma melancolia
nostálgica qualquer apoderava-se dela e fazia-a chorar. Todos os anos a mesma
coisa. E o choro nem sempre era de tristeza, às vezes era de felicidade por
concretização do que de bom lhe tinha acontecido. Que confusão esta cabeça! Começou
a ficar de dia e os passarinhos começaram a chilrear e a voar de árvore em árvore.
Estava uma manhã fria, mas era bom ver-se rodeada de todo aquele verde que tanto gostava, e começou a sentir uma
sensação de satisfação por conseguir ser tão forte assim e ao mesmo tempo
parecer tão frágil... não era bem uma capa, mas qualquer coisa parecida que a
faziam vangloriar-se agora que olhava para a natureza que tinha a sua volta. Decidiu
pôr os auscultadores ao voltar para casa e começou a dançar pelo caminho, “o
atalho “ que fazia há anos e anos enquanto por ali andava apé. Já estava mais
contente e a respirar melhor, lembrou-se das coisas boas que tinha na sua vida
e continuou a saborear a música e o cheiro da manhã. Finalmente chegou a casa,
subiu para o seu quarto, tirou o casaco e dirigiu-se para a varanda, acendeu um
cigarro, ficou a ouvir mais uns minutos os passarinhos e pensou que amanhã...
bem, ia ser o último dia de um ano que queria deixar para trás e que ia deixar
para trás, entrando numa nova etapa. Acabou o cigarro que deixou no cinzeiro em
cima da mesa. Voltou para dentro, lavou os dentes e decidiu deitar-se... Amanhã
era outro dia.
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